Por Átila Soares da Costa Filho.
A estranha saga da tribo que desconhecia a religião e a guerra
Nem mesmo a mais densa floresta tropical do mundo seria obstáculo para os olhares curiosos da mídia internacional naqueles meses quentes de 1972. Sendo o estilo “documentário televisivo” ainda uma novidade – e muito apreciada nos lares, sobretudo americanos e europeus -, a bola da vez da imprensa planeta afora era a ilha filipina de Mindanao, no Sudeste Asiático. O motivo? Teria sido descoberta, no ano anterior, a comunidade humana mais primitiva de todos os tempos, se comportando e sobrevivendo de maneira exata a dos ancestrais na Pré-História.
Tudo se deu por conta das informações passadas por um caçador ao diretor da agência governamental de apoio e preservação às minorias culturais daquele país – a PANAMIN -, Manuel Elizalde (este, um amigo íntimo do ditador filipino Ferdinando Marcos). O rústico caçador confessara a Elizalde seus raros contatos com alguns habitantes na “intocada” região. Estes encontros teriam posto um fim de, pelo menos, mil anos de isolamento total daquela pequena comunidade, desde seu assentamento ali. Não demorou para que o Ocidente, sempre ávido por curiosidades exóticas, tomasse conhecimento daquele furo excepcional de reportagem. Afinal, nossa cultura passou a ser herdeira da trilha iniciada pelo antropólogo britânico Bronislaw Malinowski (1884-1942), pioneiro da Antropologia Funcionalista. Esta corrente defendia as instituições sociais como dependentes da cultura, onde esta e o indivíduo se integram e interagem. Assim, Malinowski entendia o “animal humano” como um organismo vivo que gostava de fabricar todas as ferramentas que o conduzissem à realização de suas vontades.
A princípio tudo aquilo, de fato, remetia a uma genuína viagem no tempo: os habitantes, de aspecto muito primitivo, e andando seminus, viviam de forma extremamente minimalista, se valendo de uma tecnologia arcaica ao máximo. Sem a menor dúvida, não haveria espaço para grandes realizações na produção artística, de utensílios, ou na fabricação de armas, e muito menos arquitetônica (já que a vida era em cavernas). A escrita, completamente ignorada. Também chamava a atenção o caráter pacífico daquela gente que, ao que tudo indicava, ignorava em seu vocabulário termos para “arma”, “guerra” ou “inimigo”, e não praticavam religião ou rito algum. Apesar do pouco número de integrantes, as junções consanguíneas também eram proibidas – assim como a traição conjugal.
O primeiro encontro de Elizalde com os tasaday acontecera em junho de 1971, em uma clareira montada na margem da floresta. Para ali havia se dirigido com um grupo que incluíam um piloto de helicóptero, um médico, seu guarda-costas, alguns nativos (que ajudassem na comunicação) e Edith Terry, uma estudante da Universidade de Yale. No ano seguinte, foi a vez de Elizalde trazer consigo a Associated Press e a National Geographic Society para um novo encontro – agora, no interior de uma “autêntica” caverna pré-histórica. Eram muitas as matérias que iam para a mídia impressa e eletrônica, além de documentários na TV e entrevistas. O tema fervilhava em todas as grandes capitais do planeta, provando que os tasaday gozavam de uma imensa popularidade.
Porém, em 1976, o presidente Ferdinando Marcos manda fechar o acesso à então-proclamada reserva. Na verdade, desde 1972 que a mesma tinha tido sua acessibilidade muito limitada pelas autoridades, em uma política de preservação cada vez mais obscura. Àquela altura iniciava-se por parte da imprensa e opinião pública uma série de desconfianças sobre a insólita história. A razão foi uma série de incompatibilidades que naturalmente iam se apresentando, como o fato de jamais alguém ter achado restos de defuntos dentre a comunidade, nem mesmo traços de rejeitos ou resíduos, naturais em qualquer grupo humano – pré-histórico ou não. Também a honestidade de Elizalde foi posta em dúvidas depois do mesmo ter informado sobre a dieta de 24 remanescentes na aldeia, como composta por frutas silvestres, miolos de palma, inhame (que se achava em escassez na época), raízes, larvas e girinos. Entretanto – como foi posteriormente comprovado -, tal hábito alimentar viria a compor somente menos de 30% das necessidades energéticas daquele resto de povo, o que se constituía em uma inviabilidade total.
De fato, a fama de Elizalde nunca tinha sido das melhores: envolvido em escândalos, o ambicioso bon vivant às vezes podia parecer querer se aproveitar da causa para se apropriar dos hectares da reserva e tocar seus projetos na política. Este playboy não hesitaria em proibir terminantemente o acesso de nutricionistas e agentes de saúde desejosos de aprofundarem suas pesquisas em torno da aparentemente mal-nutrida tribo… e foi o que fez. Aos poucos, o mundo ia se esquecendo dos exóticos tasaday.
Eis que, após o misterioso assassinato em 1983 de Benigno Aquino Jr. – líder da oposição ao governo de Marcos -, Elizalde foge do país, vindo a ser acusado de levar 35 milhões de dólares da fundação. Ainda retornaria às Filipinas em 1987, mas viria a falecer de leucemia na Costa Rica dez anos mais tarde, viciado e completamente falido. As fontes informavam que o motivo da falência foram o vício, seu gosto exacerbado por bebida e mulheres (para sua residência na Costa Rica, havia até trazido algumas jovens filipinas). Seja como for, com a deposição de Ferdinando Marcos em 1986, finalmente, o caminho parecia estar livre para a imprensa e os pesquisadores… e foi aí que a chocante realidade veio à tona.
O “Paraíso Idílico” tem seus dias contados.
Oswald Iten, um antropólogo e jornalista suíço vai às cavernas e passa – juntamente com auxiliares, incluindo o repórter filipino Joey Lozano – cerca de duas horas com seis membros tasaday. O depoimento de Iten revela que as cavernas, no instante de sua chegada, estavam todas desertas e que, simplesmente, aquela comunidade supostamente paleolítica – agora vestida de jeans e t-shirts – era nada mais que integrantes de conhecidas tribos locais que, sob pressão de Elizalde, passaram a se comportar, diante das lentes, como da Idade da Pedra em troca de benesses assistencialistas. Diria Iten: “A fraude parecia óbvia já há tempos. Alguns queriam saber porque as cavernas eram tão limpas. Mesmo uma tribo da Idade da Pedra teria produzido lixo – como cascas de caranguejo ou restos de comida. E como uma pequena tribo poderia evitar a consanguinidade? Além de tudo, estes indígenas também se posicionavam a apenas três horas a pé de uma vila moderna. Parece estranho não terem encontrado a aldeia enquanto procuravam por comida”.
Em outro episódio, a revista alemã Stern em 1986 enviou jornalistas para algumas entrevistas com o grupo. Logo a seguir, aqueles alemães declararam ter notado partes de roupas de tecido por baixo das folhagens com as quais os nativos tentavam se fazer passar por primitivos. Claramente, os mesmos foram pegos de surpresa pelos mesmos jornalistas e, desesperados, rapidamente se “ajeitaram” na forma que puderam…
Seja como for, mais interrogações se somariam a tantas mal explicadas questões, como o porquê dos membros da tribo serem tão resistentes a doenças (pois o isolamento absoluto deveria lhes atribuir o efeito contrário), e da razão de tantos de seus instrumentos e utensílios parecerem cortados com uso de facas de aço, se todos ali deveriam desconhecer o metal. Agora, todo o cenário parecia revelar um grande embuste montado para gerar mais dinheiro, assim como desviar a atenção dos excessos totalitaristas nas Filipinas. A ideia seria maquiar o país como mantenedor de um Éden pacífico onde a inocência e a paz fossem ali soberanas. Mas os eventos de então, parecendo conduzir ao sepultamento do caso, também traziam algumas revelações em sentido oposto.
Ainda em 1986, durante o segmento intitulado “A tribo que nunca foi” para o programa “20/20” da ABC, dois jovens tasaday disseram ao entrevistador, através de Galang, um tradutor contratado, que eles realmente não eram tasaday. Dois anos depois, os mesmos tasaday – de nomes Lobo e Adug – vieram a público confessar que, na verdade, haviam mentido na entrevista, encorajados pelo tradutor, que lhes prometera cigarros e roupas caso topassem entrar na farsa. Galang ainda confirmaria a declaração de ambos.
Posteriormente foi a vez de um acadêmico de Linguística da Universidade do Havaí, o Professor Lawrence A. Reid, trazer mais elementos de grande relevância após ter passado 10 meses com a tribo e mais alguns grupos linguísticos vizinhos entre 1993 e 1996. O professor concluiu que provavelmente eram tão primitivos quanto aparentavam de quando surgiram para o mundo, e que sua língua era um dialeto diverso daquele do grupo mais próximo. Entretanto, o mesmo viria a publicar no periódico Linguistic Archaeology que, após uma análise pormenorizada, verificou-se que, na verdade, havia cerca de 300 variações do dialeto tasaday no Kulaman (parte do Manobo). Reid ainda declarou que os tasaday tinham se espalhado fora da comunidade do Cotabato há não mais de dois séculos – provavelmente em razão de algum surto de doença. Mais uma vez a versão do embuste ganhava força, já que a impressão era que se esculpia a imagem da tribo como do “bom selvagem”; e seu mundo, o idílico símbolo de uma nação notoriamente opressora.
Mas Elizalde estava longe de se render. Empenhou-se em defesa dos tasaday quando o congresso ia a fundo na história para descobrir alguma provável farsa. Em 1988 leva membros da aldeia para Manila a fim de abrir um processo contra os “caluniosos” professores filipinos. E, apesar das desconfianças de que um dos redatores dos discursos da presidente Corazon Aquino fosse um amigo pessoal do mesmo, naquele ano, a própria declara que os tasaday eram uma “legítima tribo da Idade da Pedra”.
Afinal, os tasaday eram, sim, muito rudimentares, mas não levavam, propriamente, uma vida ao estilo paleolítico. Estudos antropológicos apontaram, além do fato de pertencerem ao grupo Lumad, que estes seminômades adotavam a economia de subsistência de forrageamento. Sua dieta consistia de alimentos silvestres e caseiros, extraídos de pequenos jardins, onde a maior parte era obtida com o escambo de produtos florestais com os agricultores manobo – a não mais que 40 quilômetros de distância. Quanto às cavernas, apenas as procuravam para se abrigar à noite em razão de suas idas atrás de comida. Na verdade, eles viviam em cabanas simples. Assim, mantinham certo contato com outros grupos manobo do Cotabato do Sul, especialmente o povo de Blit (distando a apenas 4 quilômetros dos tasaday).
Hoje os tasaday, obviamente, cederam à imperiosa força da Nova Ordem, da evolução cultural e tecnológica de um mundo geopoliticamente muito transformado, e se acham em situação de pobreza – a exemplo do que ocorre com os povos indígenas no continente americano. A farsa, tida como a maior na Antropologia depois do capítulo “Homem de Piltdown”, foi um fato. Porém, mesmo os catedráticos mais exigentes concordam que a descoberta trouxe alguma novidade para o cenário da Antropologia, além da sensação de espanto geral. Lembremos que a Humanidade conquistara o espaço havia pouco mais de uma década, e que a Guerra do Vietnã expunha o que havia de pior em nossa natureza. Um retorno ao Éden pacífico, ainda que inconsciente, talvez fosse o sonho de muito bicho-homem naqueles dias tão singulares na História.
Átila Soares da Costa Filho é especialista em História, Antropologia e Arqueologia. Também é colaborador da revista “Humanitas” (Ed.Escala, São Paulo) e autor de 4 livros.
Referências bibliográficas.
NANCE, John. The Gentle Tasaday: A Stone Age People in the Philippine Rain Forest. New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1975.
HEMLEY, Robin. Invented Eden: The Elusive, Disputed History of the Tasaday. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2003.
HEADLAND, Thomas N. (ed.). The Tasaday controversy: Assessing the evidence. American Anthropological Association Scholarly Series, 28. Washington, D.C.: American Anthropological Association, 1992.
ITEN, Oswald. Die Tasaday: Ein Philippinischer Steinzeitschwindel. Neue Zurcher Zeitung: Zurich, 12 abr. 1986, p. 77-89.
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