Da Vinci conhecia o Sudário de Turim?
Como o enigmático “Ritratto di Lecco” se torna um discurso sobre a Ressurreição
Por Átila Soares da Costa Filho
Foi há quase um ano que o agora denominado “Ritratto di Lecco” (outrora “Cristo di Lecco”) começou a ser centro de uma bateria de análises desde o município lombardo de mesmo nome, provocando toda sorte de reações no meio acadêmico o quanto se pode imaginar. Este pedaço de papel, medindo 24 x 16,8 cm e 0,02 cm de espessura, com a imagem do rosto em ¾ de um homem de cabelos e barba longos, parece fazer alusão à figura clássica do Cristo, mas o curioso é que também nos leva à grandeza e dignidade da mítica “Mona Lisa”. De fato, tanto o ângulo quanto a firmeza da personalidade transmitidos no olhar daquela figura ao contemplador nos farão lembrar o famoso autorretrato de Turim de Leonardo da Vinci.
Não tardam, a partir de janeiro de 2021 chegam os resultados positivos dos estudos preliminares realizados, cruzando as pesquisas relativas ao tipo de papel utilizado com outros da mesma época – investigação necessária para estabelecer numa primeira fase a probabilidade da hipótese da paternidade leonardiana do desenho. A “A.R.T. & Co.” (Technological and Conservative Restoration Applications), ligada à Universidade de Camerino e ao Ministério do Patrimônio Cultural da Itália, realiza uma série de exames tecnológicos que incluem análises de imagens multiespectrais (infravermelho, fluorescência ultravioleta, ultravioleta refletido, luz pastosa, luz transmitida, macrofotografia), fluorescência de raios-x, espectrografia infravermelha, microscopia óptica e medidor de pH. Conduzidos pelo Dr. Giuseppe di Girolami, os trabalhos apontam para um resultado altamente consoante a uma obra de autoria de Leonardo, em 1492. E é a partir desta fascinante e encorajadora premissa que é dada a largada para um aprofundamento sobre as possibilidades reais de ser uma obra autoral do gênio toscano.
Tendo um referencial inesgotável dentro da iconografia cristã a apontar fortemente uma conexão “Lecco” – Jesus (sendo, a mais forte, a presença da emblemática auréola), podemos dar um passo adiante a procurar por eventuais elementos a sustentar tal ideia. Pois bem, sob minha ótica, existiriam três pontos da filosofia cristã no desenho (hoje, em poder de dois colecionadores de Lecco) que podem ser perfeitamente amarrados e revelar algo mais profundo e metafísico… tal qual os interesses de Leonardo.
A SERPENTE. Alocada de forma meio discreta, na zona inferior da barba do personagem do “Ritratto”, surge-nos uma figura de interpretação mais confusa. Todavia, com a devida atenção, pode-se perceber algo como uma serpente enrolada em si mesma em meio a vários traços de “pentimenti” – ou seja, rabiscos de quando o autor ainda guardava dúvidas quanto à melhor pose para a cobra (por exemplo: se mais ou menos enrolada, ou empinada – como atesta a corcova, sugerida). Todos estes traços viriam a ser confirmados por minhas análises das fotos obtidas com a tecnologia LAM, de Pascal Cotte.
Na verdade, a figura da serpente já havia sido explorada por Leonardo (vide seus desenhos no Códex de Windsor, 12282 a), mas nada tão surpreendente quanto o que viria em 2010: Após profunda análise digital sobre a “Última Ceia” pelo acadêmico italiano Mario Taddei – um aficionado por Da Vinci do ponto de vista tecnológico – descobre-se o desenho de uma cobra, como acredito também estar figurada em “Lecco”. Chegou-se a especular se aquela seria alguma referência ao brasão (também presente, na parte superior do mural) da tradicional família governante de Milão, os Sforza; entretanto, as características figurativas do animal afastavam totalmente a hipótese. Então, por que estaria a cobra lá? À época da descoberta, considerou-se ser nada mais que uma brincadeira sem muito sentido de Leonardo em cima de Ludovico Sforza, seu cliente.
O fato é que, repetindo-se esta presença reptiliana na sanguínea de Lecco, cria-se instantaneamente uma pergunta: em sendo, realmente, uma cobra, existiria uma conexão entre o “Ritratto” e o “Cenacolo”? Poderia, então, ser o desenho um estudo para a cabeça de Cristo no mural em Santa Maria delle Grazie, finalizado em 1498? Acredito, sim, haver uma possibilidade. Ora, a serpente (tal qual o basilisco do bestiário) é símbolo de Satanás e do pecado original; no “Ritratto” está subjugada pela notória magnanimidade do “homem de cabelos e barba compridos” – muito provavelmente, ele é Cristo, como veremos a seguir. Já o réptil, se acha reduzido em proporção, parecendo acanhado, rebaixado. Há um bom exemplo sobre este conceito imortalizado na obra “A Ressurreição de Cristo” (1502), de Rafael Sanzio – ele mesmo, um seguidor de Leonardo. Estando hoje como parte do acervo do Museu de Arte de São Paulo, esta interessante pintura nos revela, em detalhe, uma cobra aterrorizada, estancada perante a elevação do Salvador ao derrotar a Morte e a Escuridão. É o horror de Lúcifer em contraste com a serenidade gloriosa do Filho de Deus.
Outra interpretação, nos ensinamentos herméticos (tão familiares a Leonardo), considera a serpente também como símbolo de renascer dada sua faculdade em trocar de pele e se “transmutar” numa quase nova criatura… tal qual ocorreu com a substância do Cristo ressurgido dos mortos.
A CABEÇA DO HOMEM. Como já especulado, o “Ritratto di Lecco” poderia nada mais ser que um preparatório de Leonardo para a cabeça do Cristo em sua célebre “Última Ceia”, num desenho a meditar sobre sacrifício, paixão e Ressurreição. Se não, vejamos: a maneira como Seu rosto resplandece é quase etérea – resultante do característico sfumato – e se coloca como que num instante para-histórico, “fora de nosso tempo”, já que parece querer estabelecer contato visual com o espectador em qualquer era, de qualquer realidade. Assim, este Cristo se enquadra num estado de solenidade no infinito do instante, modelando tempo e espaço: Falamos aqui de um Jesus não-corpóreo, mas espectral. Aliás, exatamente desta forma que Ele era descrito após ter derrotado a Morte pela Ressurreição: um espírito que, ainda que se comunicasse “naturalmente” com os vivos, vencia as limitações e barreiras do mundo físico com muito mais frequência que antes da crucifixão – assim os evangelhos nos dão a entender. Este “Cristo”, aqui, parece tendo já superado a Morte e vencido o Mal (a serpente) para sempre. Como na “Última Ceia”, ao que parece, a sanguínea também fala do Messias, do caminho da redenção e do Mal que espreita. A diferença é que, em “Lecco”, a vitória já foi alcançada.
O CORPO DO HOMEM. Um fator que em muito me chamou a atenção enquanto analisando a sanguínea, é a inegável semelhança desta com alguns aspectos faciais no Santo Sudário de Turim. Teria, então, o artista sido influenciado pelo lençol para criar o desenho? E, se assim o foi, Leonardo entrara em contato diretamente com a relíquia – esta, considerada a prova viva no mundo cristão do maior evento da História, a Ressurreição? Para isto, basta vermos a imensa harmonia fisionômica entre o rosto de Jesus na mortalha e nas pinturas da série “Salvator Mundi”, onde as mesmas guardam o modelo de representação de Leonardo para a face do Redentor. Invariavelmente, estas obras são atribuídas a discípulos de Da Vinci, baseadas em algum original seu perdido; porém, em certos casos, poderá haver uma participação mais ou menos direta do mestre na execução. Desta feita, a similaridade dos rostos nas pinturas com o das marcas no lençol é tão grande que até se permite uma perfeita justaposição entre este e aqueles, o que vem a chamar à atenção sobre um certo fator: Leonardo apenas poderia construir aquele modelo para o “Salvator Mundi” se houvesse testemunhado pessoalmente a “matriz” – ou seja, a própria Sacra Síndone. Um ponto interessante é que mesmo o detalhe de um ligeiro calombo no dorso superior nasal que vemos no Sudário também está na sanguínea de Lecco – curiosamente, assim como no lenço de Manoppello (o “Véu de Verônica”). Ainda que não existam documentos que liguem o artista diretamente aos proprietários do Sudário, os Sabóia, o mesmo não pode ser considerado prova de que não possa ter ocorrido – afinal, também não existe nenhuma prova verdadeiramente cabal de que Leonardo tenha pintado a “Mona Lisa”, algo universalmente aceito desde que foi criada. Entretanto, o gênio toscano chegou a registrar em um de seus cadernos uma ida a Sabóia entre o final dos anos 1480 e o início dos 90, com finalidade ignorada. Detalhe: foi justamente por volta deste período que Leonardo atingia seu nível de maior poder criativo.
Diante desta chance sobre uma aproximação com a relíquia-mor, tratei de procurar algo a mais com base nesta possibilidade. E foi nas linhas curvas e destacadas dos cabelos deste aparente Jesus – confirmadas agora pelas realçadas fotos multiespectrais de Pascal Cotte – que notei algo bastante curioso: o esboço sugerindo o corpo de um homem nu, jazendo como que reproduzindo a pose daquela figura esmaecida no Lençol de Turim.
A propósito, a prática de Leonardo em ocultar referências em suas criações, longe de ser mito ou sensacionalismo, é um fato já considerado no meio acadêmico, sobretudo pelas palavras do próprio artista no “Tratado da Pintura” (1632): “Penso que não deveríamos desprezar quem olha atentamente para as manchas da parede, os carvões no fogo, as nuvens, a correnteza da água ou coisas similares, os quais, se bem considerados, proporcionarão que se encontrem criações extraordinárias a despertar o espírito do pintor para novas e diversas composições: de batalhas, de animais e homens, paisagens, demônios e outras coisas fantásticas. Tudo, enfim, servirá para enaltecer o artista, pois fará com que se honrem os elementos confusos, já que despertam o gênio a novas invenções.”
Para o pensativo – e nada convencional – “maestro”, certamente tudo valeria como um exercício de percepções ou de raciocínio. Um jogo com grande potencial de tornar qualquer pintura mais rica e interessante. Então, nada mais leonardiano como o que aqui se sugere.
O “homem do Sudário” oculto: nova evidência do encontro de Leonardo com a relíquia mais venerada da História?Linhas em destaque visíveis a olho nu, mais tarde confirmadas pelas fotos multiespectrais LAM (Imagens: Átila Soares / GM).
Em assim sendo, temos três pilares para dar sustento a um discurso a respeito da superação da morte, da ressurreição, da desafiadora metamorfose onde a paixão vira regozijo e o fim se transforma em renascer. Se para Leonardo o núcleo da vida é a própria constância das inconstâncias, mudança e devir, a sanguínea de Lecco pode ser, então, um legado significante em forma de desenho: Um testemunho da Arte como instrumento de meditação sobre os mistérios da roda invisível da vida.
Átila Soares da Costa Filho é professor e autor, graduado em Desenho Industrial pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. É pós-graduado em História, Arqueologia, Patrimônio, Igreja Medieval, História da Arte, Antropologia, Sociologia e Filosofia. Também é autor de 4 livros e membro do comitê científico na Mona Lisa Foundation (Zurique), e no projeto L’Invisibile nell’Arte (Roma).
Agradecimentos à Valéria Vicentini.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
____________________. Leonardo da Vinci (An Artabras Book). Nova York: Reynal & Co. e William Morrow & Co., 1965.
BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992.
DELUMEAU, Jean. A História do Medo no Ocidente (1300-1800): uma cidade sitiada. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.
ECO, Umberto. Arte e Beleza na estética medieval. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1989.
PICKNETT, Lynn; PRINCE, Clive. O Sudário de Turim: Como Leonardo da Vinci enganou a história. São Paulo: Record, 2008.
POMILIO, Mario; CHIESA, Angela Ottino della. L’opera completa di Leonardo pittore. “Classici dell’Arte”, 12. Milão: Rizzoli, 1978.
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